Gostem ou não, todos os países são afetados pela tensão entre EUA e China. Essa guerra fria não era inevitável nem é inexorável: pode escalar para uma terceira guerra mundial; pode ser superada por uma nova ordem harmônica e próspera; ou pode se prolongar indefinidamente. O futuro dirá. No presente, ela é incontornável. Porém, é diferente da velha guerra fria. Lá as relações comerciais entre os dois blocos eram obliteradas pela cortina de ferro num jogo de “soma zero”. A economia da URSS era inexpressiva comparada à da China. Na geopolítica multipolar e na economia globalizada do século 21, se a rivalidade entre Washington e Pequim tem pontos de alto risco militar, notavelmente Taiwan, ela se dá, sobretudo, no plano comercial e no tecnológico. Nesses aspectos, contudo, ambos são não só competidores, mas também parceiros.
O cenário impõe um trilema: o desafio de construir, a um tempo, pontes para intensificar trocas econômicas; espaços de cooperação ante desafios comuns (como o clima ou pandemias); e anteparos que garantam a convivência entre sistemas político-ideológicos antagônicos: as democracias e as autocracias. Nos dois primeiros aspectos, a comitiva encabeçada pelo presidente Lula da Silva na China – que acabou segmentada em duas fases em razão de seu mal-estar – tem oportunidades formidáveis. Mas convém redobrar a prudência em relação ao aspecto geopolítico.
Até aqui, o roteiro diplomático de Lula percorreu grandes zonas de interesse nacional. Eleito, foi à Conferência Climática da ONU (COP-27), sinalizando a reversão do antiambientalismo de Jair Bolsonaro. Empossado, visitou parceiros do Cone Sul, EUA e agora a China, nosso principal parceiro comercial. A composição da comitiva e da agenda responde a essa situação. Pauta-chave é a intensificação da exportação de commodities. Mas a visita pode diversificá-la e agregar valor. A indústria pode abrir nichos de exportação, de importação (sobretudo de tecnologia) e de investimentos (sobretudo na infraestrutura). Há oportunidades na área da sustentabilidade: o apoio à candidatura do Brasil para sediar a COP-30, o mercado de carbono ou investimentos em tecnologias verdes e na Amazônia. Tais possibilidades foram desperdiçadas pelas taras ideológicas de Jair Bolsonaro, a começar por seu alinhamento a Donald Trump e a retórica anti-China. Espera-se que Lula não incorra no mesmo erro com o sinal trocado.
Nada obsta, por exemplo, que aproveite os holofotes para advogar a paz. Mas se ele está certo em constatar que a China tem as alavancas para mudar os rumos da guerra da Ucrânia, estará equivocado se supor que pretende empregá-las. A viagem de Xi Jinping a Moscou cimentou sua solidariedade à Rússia. Não por hostilidade à Ucrânia, mas porque isso convém à sua geoestratégia: ampliar a dependência da Rússia e aproveitá-la em seu confronto com o Ocidente. Seu “plano de paz” é inexequível e injusto: prevê o fim das sanções ocidentais, mas não a desocupação de territórios pelos russos. Qualquer sinal de alinhamento a ele seria um quixotismo diplomático que em nada favoreceria a paz. Para concretizar seus acordos de comércio e cooperação, o Brasil não precisa apoiar um plano que o próprio Xi sabe natimorto. Isso só despertaria dissabor na Europa e EUA.
Várias vezes Lula sugeriu que a culpada pela guerra é a Otan. Há poucos dias, insinuou que a Lava Jato seria resultado de um complô armado pelos EUA. A mídia oficial chinesa vem explorando declarações suas contrastando a China como pacificadora e os EUA como belicosos. Ao mesmo tempo, China e Rússia ambicionam transformar o Brics, originalmente um grupo de economias emergentes, em um clube geopolítico de viés antiocidental, manobrando, por exemplo, para incluir regimes de cunho autocrático, como Irã, Turquia e Arábia Saudita.
Na guerra da Ucrânia, a posição da China é de “neutralidade pró-Rússia”. Isso serve a seus interesses. Mas o Brasil não ganhará nada se Lula der margem para que sugiram, e muito menos se sugerir, que, na nova guerra fria, a posição do País é de uma “neutralidade pró-China”.
Notas & Informações – Há 9 h