Após a histórica promulgação da reforma tributária sobre consumo, que vai simplificar impostos sobre bens e serviços comercializados no Brasil, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve enviar em até 90 dias ao Congresso uma proposta de ampla modificação da tributação da renda no país, que vai ter impacto direto no bolso dos brasileiros.
Para Bráulio Borges, economista-sênior da consultoria LCA e pesquisador-associado da FGV, o governo tentará, nessa segunda etapa da reforma tributária, elevar sua arrecadação, com aumento de impostos, sobretudo sobre brasileiros mais ricos.
Em entrevista à BBC News Brasil, ele nota que o rombo nas contas públicas continua como um grande desafio para o governo, com impactos negativos sobre custo do dólar, inflação e taxa de juros, afetando o desempenho da economia.
Por isso, acredita Borges, a gestão Lula vai tentar acelerar a revisão do Imposto de Renda (IR), buscando reforçar o caixa.
“Essa segunda etapa da reforma tributária que envolve Imposto de Renda e desoneração da folha pode gerar algum aumento de carga tributária. E o governo precisa disso para cumprir as metas fiscais de 2025 e 2026”, avalia.
Borges ressalta que estão no radar do governo tanto medidas para cortar impostos, como aumentar a faixa de isenção do Imposto de Renda para a classe média e desonerar a folha de pagamento das empresas, quanto aumentar tributos, como a volta da taxação de dividendos (parte do lucro das empresas distribuídos aos sócios).
Mas o saldo geral, avalia, tende a ser de aumento da arrecadação.
Apesar do esperado empenho por mais receitas, o economista não acredita que o governo tente mudar regimes de tributação especial, que garantem impostos reduzidos para empresas e profissionais liberais, como o Simples Nacional e o Lucro Presumido.
Borges engrossa a crítica a esses regimes, duramente questionados por economistas como Armínio Fraga, Samuel Pessoal e Sergio Gobetti.
Na visão deles, regimes especiais deveriam beneficiar apenas pequenos negócios, o que não seria o caso de parte das empresas atendidas, já que o limite de faturamento anual para estar no Simples, por exemplo, está em R$ 4,8 milhões.
Para o pesquisador da FGV, esses regimes viraram um “vespeiro” difícil de mexer, devido à força de entidades de classe que representam profissionais liberais beneficiados pelos impostos menores, como advogados, médicos e economistas.
“O Simples beneficia principalmente vários profissionais liberais que têm muito poder, que têm seus interesses representados por entidades de classe poderosas. Os próprios políticos, muito deles, são profissionais liberais”, ressalta.
O prazo de 90 dias para envio das propostas de reforma do Imposto de Renda e de desoneração da folha de pagamentos ao Congresso está previsto na reforma tributária recém-aprovada no Congresso.
Essa reforma determina a substituição de cinco tributos (PIS, Cofins e IPI, de competência federal; e ICMS e ISS, de competências estadual e municipal, respectivamente) por um Imposto sobre Valor Adicionado (IVA).
O IVA é um imposto que incide de forma não cumulativa, ou seja, somente sobre o que foi agregado em cada etapa da produção de um bem ou serviço, excluindo valores pagos em etapas anteriores. O modelo acaba com a incidência de impostos em cascata, um dos problemas históricos do sistema tributário brasileiro.
Com a reforma, a cobrança de impostos também deixará de ser feita na origem (local de produção) e passará a ser feita no destino (local de consumo), uma mudança que visa dar fim à chamada “guerra fiscal” — a disputa por cidades e Estados por meio da concessão de benefícios tributários, com objetivo de atrair o investimento de empresas.
Essas mudanças vão simplificar o atual sistema e acabar com distorções tributárias, tendo forte impacto no crescimento, assinala Borges, citando estudos internacionais sobre IVA e projeções feitas para o caso brasileiro por ele e outros economistas.
Ele ressalta que o texto final aprovado pelo Congresso não é o ideal, por ter criado muitas exceções (produtos com alíquota reduzida que acabam elevando o IVA padrão) e adotar um prazo longo de transição. Ainda assim, diz, o novo modelo será “muito melhor que o atual” e deve impulsionar o PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e serviços do país) em mais de 10% no longo prazo.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista, feita por telefone e editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil – Qual sua avaliação sobre o resultado final da reforma tributária aprovada no Congresso?
Bráulio Borges – A reforma ideal seria realmente ter uma alíquota única, sem muitas exceções, com uma transição um pouco mais rápida. Mas a gente já sabia que o ideal seria muito difícil. Quase nenhum país do mundo tem um sistema de IVA com alíquota única. A maior parte tem três, quatro alíquotas, alguns até chegando a cinco ou seis, como a índia.
Na prática, a gente acabou, no processo de negociação política, criando quatro tipos de alíquota (na reforma brasileira), porque, além da alíquota padrão, tem a alíquota zerada, tem a alíquota reduzida e tem uma alíquota específica para os profissionais liberais, com um desconto em relação à alíquota padrão.
E a transição vai acabar sendo um pouco mais longa, principalmente do ponto de vista de empresas e consumidores, que (a substituição dos impostos) começa em 2026 e acaba em 2033.
E isso foi necessário por várias razões. Primeiro, para dar uma certa previsibilidade para as empresas poderem se adaptar, principalmente empresas que já tinham feito seus planos de negócio considerando o sistema tributário atual.
E também porque em 2017 uma lei complementar federal regularizou todos os benefícios fiscais que os estados brasileiros haviam concedido até aquele momento, com validade até 2032.
Não à toa, decidiu-se por uma transição que só vai ter o novo sistema pleno lá em 2033.
E porque uma transição longa não é boa? Porque, as empresas vão ter que conviver com dois sistemas diferentes durante esse período. Isso pode criar algum tipo de aumento temporário da complexidade.
Então, na prática, foi feito o possível.
Até parafraseando o que o ex-ministro Maílson da Nóbrega disse numa entrevista recentemente: o Brasil perdeu a oportunidade de ter o melhor IVA do mundo, mas, ainda assim, o que a gente aprovou, certamente, é um sistema muito, mas muito melhor do que o que a gente tem hoje.
BBC News Brasil – Segundo uma projeção sua de 2020, uma reforma para adoção do IVA nos moldes propostos inicialmente tinha potencial de elevar o PIB potencial brasileiro em 20% em 15 anos. Será preciso refazer as projeções?Qual sua avaliação o texto aprovado no Congresso?
Borges – Em vez de começar pelo meu estudo, que é muito específico pro Brasil, vale a pena olhar pra uma evidência geral. E, pra isso, tenho citado um trabalho de 2020 de um autor internacional (Bibek Adhikari) que avaliou 33 países que implementaram reformas tributárias como essa que o Brasil está adotando, ou seja, substituindo tributos cumulativos sobre o consumo por tributos não cumulativos.
Ele chegou à conclusão que essas reformas, em média, aumentaram o PIB dos países em 6% dez anos depois da reforma.
É um impacto importante.
Agora, o que chama a atenção nesse trabalho é a segmentação quando ele olha para países por nível de desenvolvimento, ou seja, com PIB per capita semelhantes. Em particular, quando ele analisa países de renda média similar à do Brasil, a conclusão é que o PIB ficou, em média, 33% maior dez anos depois da reforma.
São números expressivos, até maiores do que os 20% que estimei. E é interessante lembrar que esse estudo pegou casos do mundo real e, como eu já disse, praticamente nenhum país adotou o modelo ideal do IVA.
Todos esses países tiveram que fazer algumas concessões, com várias alíquotas, com prazo de transição e, mesmo assim, os impactos econômicos são expressivos.
Queria começar citando essa evidência mais abrangente e internacional, porque acho que ela ajuda a dar uma ideia do que esperar para o caso brasileiro.
E, no caso brasileiro, fiz um estudo em 2020 em que eu estimei em 20% o impacto no PIB (em 15 anos).
A partir do desenho final da PEC aprovada no Congresso, pretendo fazer uma atualização dessa estimativa, muito embora ainda vá depender também das leis complementares que vão ser discutidas no Congresso ano que vem (regulamentando pontos da reforma).
Por exemplo, vai ter uma pressão enorme de todos os setores para colocar seus produtos na cesta básica (e assim ter uma alíquota reduzida).
Se isso acontecer, vai desvirtuar o que é a cesta básica e vai ter que aumentar a alíquota padrão.
E, se você aumenta a alíquota padrão, você pode tirar um pouco da potência da reforma (para impulsionar o PIB).
Então, para poder atualizar esse meu número, também precisarei aguardar um pouco os detalhes dessas leis complementares.
Ainda assim, diria que o impacto tende a ser menor do que os 20%, justamente porque houve uma desidratação da reforma (até a aprovação final no Congresso), mas ainda diria que seria de dois dígitos, entre 10% e 15% de impacto.
BBC News Brasil – Esse impacto econômico ainda vai demorar, ou pode ter algum efeito mais imediato?
Borges – Talvez, por algum efeito de antecipação do futuro melhor, gerado pela reforma, as expectativas mais otimistas possam gerar mais investimento hoje, e aí podem gerar mais PIB.
Mas eu acho que esse efeito de antecipação tende a ser pequeno, justamente porque a gente ainda tem uma parte grande da reforma que depende das leis complementares, que só devem ser aprovadas no final do ano que vem.
Acho que a gente começa a colher mais os frutos disso realmente em 2025 em diante.
BBC News Brasil – Críticos dizem que a reforma vai aumentar carga tributária e criar o maior IVA do mundo (segundo projeções inicias do governo, pode chegar a 27,5%, mas a alíquota ainda não está definida). Existe esse risco?
Borges – Muitos críticos da reforma tributária são do tipo “não li e não gostei”.
Agora, deixando de lado essas críticas muito politizadas, tem sim críticas pertinentes, associadas, primeiro, a essa desidratação, que foi um pouco excessiva.
Considero injustificável a alíquota (menor) para profissional liberal.
Basicamente, você está beneficiando advogado rico, economista rico, e alguns outros profissionais liberais que têm faturamento anual de mais de R$ 4,8 milhões, pois quem está no regime tributário Simples (empresas com limite de faturamento de R$ 4,8 milhões) não é acessado pela reforma.
Isso foi pressão do (presidente do Senado, Rodrigo) Pacheco, pressionado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Tem essa questão da alíquota (do IVA brasileiro ser alta). De fato, se a gente olhar para a média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a alíquota média do IVA está em torno de 19%, 20%, e o país que tem a alíquota mais alta hoje, a Hungria, é de 27%.
O Brasil poderia ter uma alíquota de 22% com esse sistema, segundo contas que o próprio governo fez e que nós da LCA também fizemos para a CNI (Confederação Nacional da Indústria).
Só que esses 22% viraram (possivelmente) 27% de alíquota padrão porque a gente foi concedendo vários benefícios de tratamentos diferenciados.
O principal deles, que surgiu muito por pressão do agro e dos supermercados, foi a desoneração (zerar o IVA) da cesta básica. Custa caro, só a (desoneração da) cesta básica aumenta a alíquota em quase dois pontos percentuais.
E as pessoas não entendem que quando você desonera a cesta básica para todo o mundo, na prática, você está desonerando o arroz, o feijão, tanto para o rico quanto para o pobre.
Por isso que eu, Bernard Appy (secretário extraordinário da Reforma Tributária) e a maioria dos analistas, defendemos o modelo de cashback, de devolução do imposto pago sobre a cesta básica, em que a devolução ocorreria somente pra um determinado público, por exemplo, que recebe bolsa família, ou que tem uma renda de até um salário mínimo.
Se você realmente fizesse esse modelo de devolução do cashback focalizado, na prática, você poderia ter uma alíquota padrão bem mais baixa, do que os 27%, 27,5% que estão estimando.
Com relação ao tamanho da carga, a carga agregada sobre o consumo não vai aumentar, isso (essa crítica) faz parte do lobby querendo evitar a aprovação da reforma.
Hoje, o Brasil arrecada 12,5% do PIB com esses cinco tributos que estão sendo substituídos pelo IVA e o imposto seletivo (tributo adicional que incidirá sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como cigarros e bebidas alcoólicas).
A reforma foi desenhada para arrecadar esses mesmos 12,5% do PIB com os novos impostos.
BBC News Brasil – A reforma da tributação do consumo levou muito tempo amadurecendo. O governo deve encaminhar ao Congresso uma ampla reforma da tributação da renda, junto com a desoneração da folha de pagamento das empresas. Essa proposta está amadurecida? Como o senhor vê as chances de aprovação?
Borges – Acho que esse tema está menos amadurecido que a reforma do IVA. Tem já estudo feito, mas a discussão política está menos avançada.
Por outro lado, acho que o governo tende sim a acelerar um pouco a discussão ao longo de 2024, porque essa segunda etapa da reforma tributária que envolve Imposto de Renda e desoneração da folha pode gerar algum aumento de carga tributária.
E o governo precisa disso para cumprir as metas fiscais de 2025 e 2026.
BBC News Brasil – Mas o aumento de carga tributária tende a aumentar as resistências a essa segunda parte da reforma, não?
Borges – É por isso que acho que o governo vai ter que ceder e fazer algum tipo de discussão de reforma administrativa (para cortar despesas com funcionalismo), como o Arthur Lira (presidente da Câmara) tem sinalizado.
A verdade é que a reforma administrativa não traz economia fiscal no curto prazo, mas acho que é um simbolismo.
E também a história das emendas (recursos federais que os parlamentares destinam para investimentos em seus redutos eleitorais).
Não vamos ignorar que já existe pressão para aumentar ainda mais o montante de emendas parlamentares que são impositivas (obrigatórias).
Então, acho que o jogo político para aprovação dessa reforma vai envolver, tanto a discussão da reforma administrativa, mas também de aumentar ainda mais o naco que o Congresso tem de poder dentro do Orçamento da União.
BBC News Brasil – O que o senhor espera dessa segunda etapa da reforma tributária?
Borges – Essa segunda etapa tem tanto medidas que vão gerar oneração, aumento de carga, como medidas que vão gerar desoneração. O ideal para o governo é que o saldo seja um ganho líquido de receitas.
E de onde virão as medidas que podem geral algum tipo de oneração?
A principal delas é a história de taxar os dividendos (distribuídos pelas empresas aos acionistas), que hoje são uma renda isenta no Brasil. Uma alíquota de 15% ou 20% gera uma arrecadação expressiva, já tem estimativas falando de R$ 50 bilhões a R$ 70 bilhões por ano.
Mas tem outras frentes de oneração também, por exemplo, (eliminar ou alterar) o Juros Sobre Capital Próprio, que é outro tipo de dividendos (que permite às empresas reduzir o pagamento de Imposto de Renda).
Tem também as deduções com gastos de saúde e educação do Imposto de Renda, que hoje beneficiam principalmente os mais ricos. O governo pode propor uma redução dessas deduções ou até a extinção.
Então, do lado das onerações você tem principalmente essas três medidas que citei.
E do lado da desoneração, o governo deve propor a desoneração horizontal da folha (de pagamento das empresas), que custa caro.
Só a desoneração dos 17 setores que o governo agora acabou de ter o veto derrubado pelo Congresso significa uma renúncia de quase R$ 20 bilhões por ano.
E, ainda, nessa parte de desoneração existe um anseio do governo de aumentar ainda mais a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física e corrigir as faixas superiores que não são corrigidas pela inflação já há muitos anos.
Essas mudanças, vale lembrar, serão feitas para melhorar a progressividade (tributar mais os mais ricos) no nosso sistema e para melhorar a eficiência também, porque a gente tem um Imposto de Renda de Pessoa Jurídica hoje no Brasil que é muito complexo.
Mas também (servirão) para aumentar a carga tributária.
Essa terceira motivação não estava presente na discussão da reforma do IVA e estará presente nesse segundo bloco de reforma.
BBC News Brasil – O Simples Nacional e o Lucro Presumido, sistemas especiais de desconto na tributação de empresas, são muito questionados por economistas. Espera alguma mudança, ou há muita resistência?
Borges – Acho que isso é um vespeiro que ninguém tem coragem de atacar.
Na verdade, existe pressão no Congresso para aumentar ainda mais o limite de faturamento do Simples (hoje de R$ 4,8 milhões ao ano).
BBC News Brasil – Por que há esse vespeiro tão grande?
Borges – Porque o Simples beneficia principalmente vários profissionais liberais que têm muito poder, que têm seus interesses representados por entidades de classe poderosas.
Os próprios políticos, muito deles, são profissionais liberais.
É óbvio que, se você passa a tributar dividendo a 15% ou 20%, isso afeta o Lucro Presumido e o Simples também (pois as empresas desses sistemas costumam distribuir dividendos para seus sócios), mas a gente sabe que as mudanças necessárias no Simples e no Presumido vão muito além disso.
O Simples, por exemplo: R$ 4,8 milhões de faturamento de corte é muito alto, numa ampla comparação internacional. Vários países tendem a adotar regime simplificados para pequenas e microempresas, mas, convenhamos, uma empresa que tem um faturamento anual de R$ 4,8 milhões não é micro nem pequena.
Agora, realmente, é muito difícil o governo atacar isso.
BBC News Brasil – O governo conseguiu aprovar algumas medidas de aumento de arrecadação no Congresso. Isso é suficiente para cumprir a meta fiscal de zerar o rombo nas contas públicas em 2024, ou será um desafio?
Borges – O governo conseguiu aprovar quase todas as medidas (de aumento da arrecadação) que ele tinha enviado para o Congresso em agosto.
A questão é que o Congresso desidratou algumas delas e existe também um ceticismo muito grande com relação aos números (de expectativa de arrecadação) que o governo apresentou para cada uma dessas medidas.
Então, isso não afasta a necessidade de um contingenciamento, o congelamento temporário de despesas, em fevereiro ou março.
Isso já está sensibilizando a ala mais política do governo, que não quer esse bloqueio de despesas em pleno ano de eleições municipais.
E aí a discussão virou mudar a meta fiscal para evitar o bloqueio, o que tem gerado muito ruído.
Lembro que as metas de resultado primário que foram estabelecidas no início desse ano não saíram do nada.
Chegar num superávit (dinheiro que “sobra” nas contas do governo, economia para pagar os juros da dívida) de 1% (do PIB) em 2026 tem uma lógica.
Hoje, o Brasil precisa de um superávit primário de pelo menos 1% do PIB por ano para que a dívida pública não suba como proporção do PIB.
Então, quanto mais tempo a gente ficar com um resultado primário negativo, distante 1% de superávit, a dívida vai continuar subindo, o que não é sustentável.
Uma coisa é a dívida subir quando parte de uma dívida baixinha, outra coisa é a dívida subir quando você já parte de um nível de dívida desconfortável, como é o caso atual Brasil (a dívida pública brasileira está em 75% do PIB, com tendência de alta).
Então, na prática, a discussão sobre reduzir a meta no ano que vem, antes mesmo do ano começar, para evitar esse bloqueio (de gastos), acaba alimentando um risco com relação à própria sustentabilidade fiscal.
E isso é contraproducente para a política monetária (definição da taxa básica de juros pelo Banco Central), porque o câmbio fica depreciado (e dólar mais caro pressiona a inflação).
É contraproducente também para a taxa de juro longo.
Hoje, o Brasil, para se financiar com títulos públicos (com vencimento) de 20 anos, 30 anos, o governo brasileiro está tendo que pagar um juro real de 5,5% ao ano.
É um absurdo de juro real isso. E isso tem impacto financeiro sobre as contas públicas, tem impacto sobre as empresas também, sobre crédito imobiliário (porque os juros pagos pelo governo servem de referência para os juros de mercado).
Vou te dar um exemplo concreto (do impacto da questão fiscal na economia).
Com base nos meus estudos, digo que hoje a nossa taxa de câmbio (o valor do dólar) poderia ficar perto de R$ 4,70, e não nos R$ 4,90 que está, se não tivesse surgido todo esse ruído envolvendo a meta fiscal desde outubro.
E, se o câmbio tivesse a R$ 4,70, a inflação estaria ainda mais baixa, o Banco Central poderia sinalizar que iria cortar (a taxa básica de juros, Selic) mais rápido do que está sinalizando, e a gente teria aí um todo um ciclo virtuoso (na economia).
BBC News Brasil – Esse ano o PIB surpreendeu positivamente os economistas. Qual sua expectativa para 2024?
Borges – Não estou muito otimista com crescimento do PIB brasileiro no ano que vem.
Estou achando que vai ser um crescimento mais na faixa de 1% a 1,5%, por vários fatores.
Primeiro, vamos lembrar que o mundo vai crescer menos no ano que vem do que nesse ano, principalmente a China, que é o principal parceiro comercial brasileiro.
O PIB chinês vai crescer (segundo projeções) um ponto percentual menos do que neste ano.
Segundo, vamos lembrar que a Argentina, que é o principal comprador de produtos manufaturados brasileiros, vai ter um tratamento de choque, um freio brusco no consumo, com esse pacote (de medidas econômicas) do Javier Milei (presidente recém-empossado).
Então, o cenário internacional é bem pior.
E quando a gente vem para dentro do Brasil, vamos lembrar que o PIB agropecuário esse ano cresceu 18% e o ano que vem vai cair 2%, pelas projeções de safra de grãos do IBGE e da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento).
Então, é muito difícil imaginar que o Brasil vai repetir o crescimento de 3% que a gente teve em 2022 e também em 2023.
História por Mariana Schreiber – Da BBC News Brasil em Brasília • 3h